21.6.07

Flor de Qualquer Menina

CIRANDA - PANCETTI, José 1902-1958
óleo sob cartão colado em madeira


Sou caatingueira
Cerejeira forte
Mulher sem norte
Flor e assombração
Abacateiro, oração e morte
Sou idioma da nova paixão
Sou como cacto, flor de Umburana
Sabor de cana
Água e aguardente
Amor sacana, escovando os dentes
Sou a semente da nova manhã
Sou rapadura, doce flor do engenho
Flor seresteira, na ronda da noite
Sou preto velho, escravo sob açoite
Sou verso antigo
Com sabor amigo
Sou sombra fresca onde reinam as manhãs
São tantas setas, tantas descobertas
Quase ninguém sabendo a direção
Abismo certo, porta entreaberta
Uma esperança pela contramão
Copo de Leite, flor de Pimenteira
O Urucum dourando a pele inteira
Sou plenamente
O sol que a pele sente
Fruta, sement, flor do amanhã
Amor que abala a alma da gente
Saudade quente, sabor de Romã
Gata arisca na beira da porta
Verdade em horta, bala de hortelã
Caboclo, flexa, rima e cansansão
Semiótica, Orixá, canção
Amor aberto, rede na varanda
Minas, Luanda, Quito e Japão
Aventureira, flor de Arueira
Doce em compota, ponte e ribanceira
A Gameleira, o peixe e o arpão
Amor contido em plena primavera
Amor doído em qualquer estação
Risos, peneiras, desenhados em painel
Porto no céu, medo de furacão
Flor do sereno, estrela da noite
Comboio, missa, padre e procissão
Avesso de um cordel que rabiscava a cor da dança
Velho, criança, Alecrim e mel
Sou mesmo eu
A fruta derradeira
A sementeira
Seu corpo e o meu
Sou alicerse de um novo tempo
O firmamento sobre o verso ateu
Nossa Senhora, Rosa de Hiroshima
A velha rima e um poema feneceu
Água da bica
Sou pá de pedreiro
A construir a ponte sobre o mal
Flor de inocência
Desafio e irreverência
Eu sou imã pra qualquer clemência
A noite cobre e o dia me acolhe
Lua descobre o manto do nobre
A armadura olvidando o não
Acácia terna, sou flor de Algodão
Sou tantas dúvidas
Sou a Padroeira
Fruta do mato
Flor de cachoeira
Um medo santo
Minha proteção
Sou coisa rara
Sou água de pote
Forró, sou xote
Cancã e animação
Um conta-gotas
Flor pra vida inteira
Chuva, poeira
Oásis e irrigação
Que coisa livre
Nadar na Ribeira
Olhar o sol
E ser ave matutina
Que abraça a flor, envolve a menina
E depõe segredos sob a nuvem cristalina.


Alyne Costa
Ssa, maio de 2007

27.4.07

O Menino e o Mundo ou O Mundo e o Menino




O Atlas descansa com o sono do menino...
Como se o mundo pudesse ser fechado.
E não houvesse as capitais.
Embora um mundo de mistérios sonhe com o menino.
Bahia, Minas, Amazonas, Japão e Grécia.
Tão menino e já conhece o mundo....
Êta mundo velho de meu Deus!
Tão velho e não conhece o menino.
E o menino dorme sua santa paz.
Nem sonha a quantas anda o mundo...
Mais peralta que o menino.
Ah, desde que o mundo é mundo, Clarismundo:
O mundo é um velho....
Eterno como um menino.

Igaporã, 2003
Para meu filho, Victor

20.4.07

Sobreviventes

Cabeça de Alho, by Alyne Costa, 2007




Perguntas sobre um abismo:
Eis-me.
Perguntas sobre lei.
Nada sei. Finjo. Desvio. Confissão.
Padre, missa. batismo, lua, concepção...
Perguntas sobre o horizonte:
Fonte.
E um doce saboroso surge dentre as louças da prateleira.
Um vinho do Porto.
Mares.
Naufrágios.
Resto-me inteira.
A boiar sobre cada questão.
A enfrentá-las despida da fera que me habita.
E se não me perguntas nada, nada sou.
Passo a habitar o labirinto dos mistérios que me transbordam.
Calo-me, catatônica.
E me apresento em paisagens camponesas.
E, talvez, em destrezas de miragens.
E se perguntas demais, me sobro aflita.
Eu não sou inventada, nem rasa.
Sou mulher, profana e insana.
Tantas vezes distante.
Noutras te enlaço.
Como se aquele passado fosse tão somente o passo.
De um baile absurdo que desfila entre nossas sementes.
Entre o desejo insano que crava os dentes.
E que grita aleluia, por sermos amantes...
Sobreviventes!

Brumado, 20 de Abril de 2007
Alyne Costa

Para C. A. P. J.

14.4.07

Das Esperas

Peneiras, by Alyne Costa 2007


Ora apresento-me numa fragilidade ambígua
Noutras me dispo e renasce uma víbora
E sem muitas profundezas, douro frases em cascatas
A plenitude das gueixas
O calafrio das mulatas
E atitudes, colho várias
Minha meiguice talhada a canivete
Minha doçura
Minha bandeira
Meu brinquedo antigo
Aquele amor guardado num lenço perfumado
A minha santa histeria
Minha sagrada alegria
Voando na contra-mão do destino que rabisquei a lápis
E sou feita ainda de tantas perguntas.
Um rascunho num pedaço de papel de pão
Paixões bordadas num embornal
E se quase nada respondo é que aprendo a ouvir
Com olhos, tato e coração
A minha santa não é casta, é vasta
E o meu amor é um féretro com tulipas
Dos sonhos em sepulcro
Das flores que enfeitam calvários
E de repente, me invadem ondinas
A luz da lua que revigora as meninas
E passo a pular amarelinha
A fazer com miçangas pulseirinhas
E visito as Igrejas, acendo incensos
E comungo, resmungo, excomungo
Essa parte é pública
A timidez é notória
Sou uma com certa dúvida
E várias com mil histórias
Não quero meus versos em molduras
Quero-os nas bocas das mais vis criaturas
Quero-os férteis, clandestinos e cretinos
No requebro das moças, no assobio dos meninos
Quero-os ponte pro que não me tangencia
Luz da lua e estrela guia
Quero parir poesia
Dançar com sílfides e gnomos
Despir-me à lua cheia numa rede
Cobrir-me de ostras
Virar mosaico
Quero-me divida em letras e cacos
Dispersos ao vento que sopra do cais
Para que quando me encontrares
Não haver nem sobras
De tantas esperas, rodilhas e quimeras.

Alyne Costa
Brumado, 14 de abril de 2007

13.4.07

Fora de Foco

Carnificina by Alyne Costa


Fora de Foco

E se eu te parecer estranha
Não se irrite
Se aparecer tristonha...
Só assiste
E se faltar paciência
Dê limite
Se franzir a testa
Um palpite
Posso estar fora de foco
Posso ter perdido a rota
Pode ter mudado a lua
Pode ter chamado a rua
E se eu esquecer a chave
Pouse a carícia
Se eu sequer acordar
Pura delícia
E se der de dar a louca
Busque malícia
E se de vez sumir
Chama a polícia
Posso estar à beira mar
Posso estar num cativeiro
Ou num banho de chuveiro
Procura pelo céu inteiro.

Brumado, 13 de abril de 2007

Alyne Costa

25.3.07

Marcha Soldado


Foto retirada do site www.caminhodesantiago.com

Pelo lado oposto, ele viria
Pisoteando dragões
De longe era miragem?
De perto: paisagem
Mas vinha...
A passos lagos e de coturno.
Meio anjo e soldado.
Presa na torre de medos: meu fado
De mim saiam lacraias
Lagartos e cobras
Tanto lixo carregado numa mala de emoções
Sinistros tremores e arrepios
E o dragão me assoprava labaredas
De salto corri por becos e alamedas.
Só.
Que sou mulher feita amiúde.
Cheia de detalhes e sombreados.
Crio monstros em castelos.
Mas teço vôos em asas do porvir.
E deles me afugento,
Mas hoje ele vinha do lado oposto.
Soltava raios em nuances de cores que jamais pari.
Assassinava meus temores
E colocou-me na garupa de seus sonhos.
Assim, pude dormir.


Alyne Costa

Brumado, 25 de março de 2007

14.3.07

A Voz do Mistério


Uma voz misteriosa atordoou meus ouvidos. Apresentou-se em várias cabeças. Um monstro? Um anjo? Um arlequim? E falava um idioma novo, recheado de improviso. E emendava idéias, gírias e onomatopéias. Eu? Atônita, tonta e lânguida. Uma centopéia de tamanco passeado no jardim. É que uma voz não se pega, guarda em cofre ou emoldura. E o que a voz diz revela a essência numa doce transparência sem nome, identidade, código ou sinal. Um dia era um cego que via muito bem... Outra vez um entregador de pizzas. E surgia seresteiro... Eu queria sacada, janela e toalha bordada com um jarro de rosas vermelhas como em cidades do interior. A voz saía de um vulcão que explodia em lavas coloridas e me abatia os sentidos. A voz era um bálsamo, um enigma, um desafio... A voz dizia tudo que eu queria ouvir. Quebrou-se em vitral e me mostrou mil faces. Eu? Uma viuvinha carregando folha no jardim. Não sabia quem era o homem.... Seria o homem? Seria a voz? Seria o dito? Seria a voz do homem como um dito, um rito em mim? Quantos eus? De quantos enigmas pode se fazer uma paixão? Bastou-me a voz, música da alma... E, fosse eu Rapunzel, lhe atirava as tranças. Não importava o semblante, a cegueira, a idade, a pena cominada, a careca, a insanidade e a overdose de fugas... Eu queria era pegar carona na nuvenzinha e entrar no seu céu... Porque bastou-me o dito pra entrar na caverna de um desejo. Eu queria na garganta aquela saliva santa que me dizia: Flor, pirâmide e poesia. Misteriosa voz que me fez amar em um só todos os homens do mundo... Os vivos e os mortos. Os santos e os encapetados. Os filósofos e os estivadores Os políticos e os professores. Os artistas e os operários. Os domadores e os trapezistas. Os que foram e os que ficaram. Todos os homens do mundo no armário da minha mente. E eu? Joaninha passeando pelo jardim. Misteriosa voz que acendeu a chama da minha ternura. Por você eu iria a qualquer canto: Índia, Jamaica, beco, gueto ou alçapão. Te levaria lírios na prisão. Te lavaria a batina após a missa. Te abraçaria a nuca e beijaria os lábios... Pois as palavras-canções que jorravam de tua boca caíram todas no lago do meu coração. E eu? Borboleta na caixa vazia da minha imensidão. Espero melancólica... Se eu perdi a voz, você há de arrancar os cabelos.... Se eu perdi a graça, você há de queimar de saudade. E se foi de verdade, tem volta... Que beija-flor não pousa num jardim?


Alyne Costa

Salvador, 2003